Sorrio. Ele tem sempre a mania de que me conhece.– Sim, sofro tudo sozinha. Nunca quis causar problemas a ninguém. Se há coisa que eu nunca quis foi ser um problema fosse para quem fosse.– Por isso é que te escondes na tua sombra.– Claro. Sempre andando despercebida e com cuidado para que continue a ser… a ser quase invisível. Amparando o que me vai caindo nos braços… Daí que tenhamos feito bem em parar fosse o que fosse.
Ele pega no cigarro.
– É curioso como é que te tirei dessa sombra.
Encosto-me na cadeira. Tenho uma leve dor de cabeça que me acompanha desde a manhã. Agora, já ao entardecer, a moinha torna-se mais evidente.
– Curioso?– Sim… Até hoje não sei bem como o fui capaz de o fazer…– Isso é fácil. Sentias-te sozinho e levaste tudo na brincadeira.– Da maneira que falas até parece que fui um inconsequente.– Foste um pouco…
A fita-me.
– Já falámos disto algumas vezes, não percebo porque é que temos de aqui voltar… Mas, na verdade, se não o tivesses feito não estávamos aqui agora.– Culpaste-me, alguma vez, por aquilo que vivemos?– Não, A. Nunca o fiz. Sabes bem que nunca te vi dessa forma. Nunca te desejei mal ou pelo facto de me teres retirado da minha sombra. Porque me perguntas isso?– Eu penso que não causo problemas a ninguém.
Entendo que já não estamos a falar de nós. Suspiro e pego na garrafa que estava pousada na mesa junto à minha cadeira.– Será?– Nunca te quis causar problemas.– Eu não to estou a dizer que o fizeste comigo. Mas… e em relação aos outros?
Ele fica pensativo e eu decido continuar. Decido tentar fazer com que ele perceba que não precisa de procurar mais nada para superar a sua carência afectiva.
– A, tu ainda tens algo de bom. Tu tens salvação, eu não.– Como assim?– Tu tens alguém que te ama: ela ama-te incondicionalmente.
Ele suspira.
– Tenho a certeza de que o seu amor é capaz de superar a tua falta de afecto.– Estás-me sempre a dizer isso…
Coloco a minha mão no seu ombro.– Não quero que te zangues comigo: só quero que fiques bem. Tranquilo e feliz… para quê andares à procura de algo que é apenas a satisfação do momento?– Faz-me sentir vivo. Já falámos sobre isso várias vezes.– Bem… eu bem sei que posso dizer-te o que me apetecer. No fim de contas, fazemos sempre aquilo que queremos.– Aquilo que sentimos…– Ou aquilo que julgas sentir.– Para de brincar com as palavras… – ele diz antes de acender o cigarro.
Oiço um pouco mais da música que toca no gira discos em silêncio.
– Como é que se faz isso? Não seguir os impulsos? – Ele pergunta, discretamente.– Não sei, A.– Como é que nós fizemos isso?– Aí está uma boa pergunta… talvez no nosso caso tenha sido diferente e tenhamos percebido que estávamos a confundir tudo: desejo com interesse. Impulso com curiosidade.– Intensidade com amizade.– Sim… foi diferente. Mas… queres-me contar o que aconteceu?– Estive com outra mulher.
Aceno. Para mim não é uma novidade. Sempre que falamos destas suas experiências ele traz aquela expressão de quem tem de dizer qualquer coisa, só não sabe muito bem como começar.
– Sim, mais uma. E não me consigo sentir mal com isso – A completa.– Nunca te sentiste mal com isso, A.– Sim. Isso faz de mim um crápula?– Não. É a tua carência…
A. encosta a cabeça na cadeira.– Parece que estás sempre a livrar-me de culpas.– Tu próprio disseste que não sentes culpa.– Sinto que estou num labirinto.– Isso só muda quando sentires que tudo o que precisas para seres completo, já o tens à tua volta. Eu sei disso e estou sempre a dizer-to. Mas só quando o sentires verdadeiramente é que estarás pronto para veres que nada em ti é vazio… ou carente. E, aí, não precisarás de mais nada.– Tenho de sentir.– Sim, tens de o sentir… como em tudo na tua vida.– E tu?– Eu o quê? – pergunto, confusa.– Tu não tens de sentir tudo na tua vida?– Bem, talvez o meu problema é que eu sinta tudo em demasia. Com demasiada intensidade e isso também não é saudável.– É extenuante.
Sorrio.– Exactamente.
Talvez seja por nos entendermos de uma forma única que por vezes me pergunto se não o amarei com todo o meu coração. Talvez sim. E talvez essa seja a razão para que eu esteja sempre a olhar por ele, sempre na tentativa de que ele se torne numa melhor pessoa e que deixe de procurar aquilo que há tantos anos já encontrou com a sua mulher.
Ou talvez são os meus devaneios. A dor de cabeça é agora mais forte.
Fecho os olhos.– Por isso eu sou um caso perdido – digo, baixinho. Mas eu sei que ele me ouviu. Ele ouve-me sempre.– Tens a certeza?– Absoluta.– Como acreditas que eu tenho salvação?– Sim. Tu tens salvação… E tens tanto para viver, já viste? Tens uma vida inteira pela frente. Cheia de grandes experiências, vais ter uma família enorme e o mais importante de tudo é que nunca estarás só. E podes ser um bom exemplo. Um exemplo de amor…
Ele franze o sobrolho.– Falas como se fosses morrer amanhã.– E não estarei eu já morta?– Não brinques com as palavras, já te disse.– Sabes que tenho razão. Apenas não mo queres confirmar, porque és meu amigo. Aceito essa tua gentileza.
Inclino-me e coloco a minha mão sobre a sua, fazendo com que o nosso olhar se encontre novamente.– Acredita em ti e no teu coração. Um dia olharás à tua volta e dar-te-ás conta do verdadeiro amor que te circunda. Um amor grande que vai esmagar o desejo esporádico.
A coloca a outra mão na minha face.– Acreditas sempre em mim.– Claro, é a única forma de não morrer subitamente. Estou aqui para isso: para acreditar em ti e…– E para amparares nos teus braços aqueles que precisarem – ele completa.
A retira a mão da minha face e coloca sobre as nossas mãos, que estão ainda unidas.
– Assim fazes-me acreditar que já me conheces.– Um pouco.– Estou meio cansada, sabes? Tantos traumas, sem que nada me iluminasse. Sabes, às vezes pergunto-me como deve ser essa sensação… Algo de terrível aconteceu, mas eventualmente a vida dar-te-á algo que te faça superar isso, que te faça ser melhor. Deve ser uma sensação única.
Volto a encostar-me na cadeira e deixo as suas mãos.
– Isso nunca te aconteceu?– Hum… Não creio. Dessa forma haveria uma justificação do porquê das coisas não te correrem bem, poderiam ter-te levado a algo bom no final, não sei. Eu estou sempre igual, no mesmo sítio, independentemente das minhas más experiências.– Como se fosses uma rocha onde a água do mar bate constantemente.
Fixo o meu olhar em A. Ele continua a fumar, a olhar lá para fora. Estamos na minha pequena varanda, a aproveitar os últimos raios de sol antes de ele ter de ir para casa.
– As rochas também se desgastam.
A apenas acena.
– Será ridículo se te disser que estou cansada disto?
A acaba de fumar o seu cigarro. O disco termina e o silêncio instala-se entre nós.
Não sei por quanto tempo estivémos em silêncio, a ouvir os carros que passam na rua.
– Não. Isso é apenas resultado da tua carência afetiva.
Nada digo. Eu sei que A ainda tem algo para dizer.
– Esta maldita carência manifesta-se de várias formas: no meu caso faz-me procurar incessantemente a falsa sensação de que estou vivo. A ti deixa-te paralizada e fechada no mesmo sítio, como se fosses uma rocha invisível.
De forma certeira, A acaba por fazer um resumo de tudo aquilo que ali estivemos a conversar. Nada surpreendente. Ele é mesmo assim.
– Agora és tu que brincas com as palavras.– Digo a verdade.– Sim, é a única verdade.
NOTA: O texto pode ser lido na sequência do conto “Parar a Tempo”: https://umolharpessoal.blogspot.com/2020/03/parar-tempo.html
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